9 Acorrentado

Todos nós já sonhamos com algum tipo de evento especial acontecendo em nossas vidas, algum acontecimento mágico que chega do nada e nos muda completamente. Poderia apostar que você já sonhou acordado com esse dia. Mas basta nutrir a fantasia por tempo suficiente para que o seu deslumbramento comece a se esvair e você passe a se questionar: esse sonho seria realmente bom pra mim?

────────────────────────────────────────────────────────────

O chão tremeu sob os meus pés quando Galantyr foi, em um único pulo, para cima do telhado do pavilhão. As criaturas começavam a se arrastar para baixo ao longo da chaminé, atraídas pelo desafio.

Corri em meio à escuridão do pavilhão, desviando dos restos de mobília abandonada que um dia fizeram parte de algum escritório ou recepção. Aquela luz pulsante no fundo da sala era a minha guia, ganhando intensidade e forma conforme eu me aproximava. Era um portal suspenso no ar, brilhante e ovalado, um espelho que refletia a minha imagem e a de Davi. Ele me entregou a chave, me pedindo para ficar de joelhos e erguer o objeto com as mãos. Começou a andar em círculos na minha volta, recitando palavras esquisitas em uma voz gravíssima, cheia de seriedade, enquanto eu ficava ali parada como o Rafiki apresentando o bebê Simba. Seria engraçado, não fossem os sons que atravessavam o teto.

Parecia que o mundo estava acabando do lado de fora. Uma sinfonia de urros abafados se misturava ao estrondo dos impactos, que chacoalhavam o pavilhão e faziam cair poeira sobre mim e sobre Davi. Eu me sentia como uma sobrevivente em um bunker, esperando um bombardeio passar. A intensidade das explosões lá fora só aumentava a cada segundo.

Davi soltou um grito, e minha atenção se voltou para ele. Estava parado na minha frente, recitando as últimas palavras do ritual com os braços e o rosto erguidos em direção ao céu. Pegou a chave das minhas mãos e apontou-a em direção ao portal. A luz azul começou a pulsar mais rápido e mais forte conforme Davi se aproximava. O contato da chave com o portal fez com que uma onda se espalhasse por toda sua superfície, como uma pedra atingindo um lago. O portal deixou de emitir o brilho azulado, e através dele, um novo mundo surgiu. Meus olhos se fecharam por conta da luz dourada e quente de um sol distante, acompanhada de uma brisa carregada de areia que me acertou o rosto. Olhei através da abertura para dentro do deserto que se estendia do outro lado. No fundo deste cenário havia uma única árvore, pequena devido à distância. O sol dava um brilho dourado à sua espessa folhagem.

— Isso aí é o inferno? — perguntei, meio atordoada pela paisagem absurda.

— Que inferno, o quê! — Davi havia voltado ao seu tom de voz normal — Isso é um mundo de passagem, onde os portais para outros planos são mais fáceis de abrir e fechar.

— Os demônios vão tentar invadir por esse deserto?

— Não se a gente fizer o nosso trabalho.

Davi levou a chave junto ao peito e proferiu mais alguns encantamentos, depois estendeu a mão que segurava o objeto até que ela pairasse sobre o limiar dos mundos, e então fez girar o pulso, como se estivesse trancando uma porta. Nada aconteceu.

Ele fez de novo, e de novo, até que suor começou a escorrer de seu rosto. Eu assistia enquanto ele falhava em cada tentativa, minha apreensão crescendo conforme a frustração dele se tornava mais evidente.

— Era pra estar funcionando — ele disse para si mesmo — Tenho certeza de que meu ritual foi perfeito, não pode ter sido isso.

Minha apreensão começou a se transformar em desespero. Eu não conseguia pensar em nenhuma forma de ajudar. Tentei chegar perto e fazer ele se acalmar, mas tudo o que ele conseguia fazer era repetir o gesto, tentativa após tentativa, o movimento das mãos cada vez mais descontrolado conforme a loucura começava a tomar conta.

Uma poeira fina começou a cair conforme Davi girava a chave de um lado para outro. À princípio era só um fiozinho, que foi se tornando mais grosso conforme seus movimentos foram ficando mais frenéticos. O objeto foi diminuindo em sua mão cada vez mais rápido, e quando ele percebeu, já era tarde demais. A chave havia se esfarelado completamente.

Davi soltou um uivo enlouquecido, e então eu soube que não havia mais esperança. Seus olhos me diziam que algo havia dado muito errado. Nós não sairíamos dali. Eu ainda estava no chão, dentro do círculo imaginário que ele traçou, quando o babaca tentou fugir. Nessa hora o meu instinto falou mais alto, e eu já estava me levantando para correr atrás dele em direção à saída quando o teto do pavilhão afundou sobre as nossas cabeças.

Eu lutava para tirar os escombros de cima de mim enquanto a luta acontecia ao meu redor. Fiquei de pé em meio a uma confusão de fogo e sangue. As criaturas convergiam sobre um único ponto, se jogando em direção à batalha e sendo arremessadas para longe. Uma dezena delas girava ao redor de Galantyr, esperando uma brecha enquanto outras iam caindo do teto direto sobre ele. As que tombavam eram retiradas pelos demônios que estavam de fora, abrindo espaço para que outras tomassem o seu lugar.

Línguas de fogo subiam em direção ao teto, acompanhando os urros do Acorrentador. Pode parecer estranho, mas eu sabia que os gritos eram de pura dor. Mesmo que eu não pudesse ver o que acontecia dentro do círculo, mesmo que meus ouvidos não fossem capazes de diferenciar os gritos dos demônios, eu podia sentir tudo de forma tão vívida que era como se eu estivesse lá no meio. Incontáveis cortes e perfurações criavam uma constelação de dor no corpo de Galantyr. O peso de todos aqueles demônios sobre ele era esmagador. Todas essas informações chegavam até mim como se aquilo estivesse acontecendo comigo. E de todas essas sensações, a mais insuportável era a angústia que pesava no peito de Gal quando ele cogitou a derrota.

Eu acho que foi isso que despertou a minha necessidade de agir. Eu precisava fazer aquela sensação parar, a qualquer custo. Conforme esse pensamento foi ganhando forma na minha mente, eu passei a sentir mais do que apenas dor vindo de Galantyr. Aquele calor que emanava do seu corpo era alimentado por uma fúria diferente de tudo o que eu já experimentei. Eu podia sentir aquela fúria crescendo dentro dele, conforme nossos pensamentos se tornavam mais conectados a cada instante. E quando aquele calor estava tão próximo da minha mente, tão intenso que seria capaz de queimar a minha alma… Eu estendi minhas mãos e tomei ele pra mim.

Um filtro vermelho sangue se manifestou sobre a minha visão. Era como se eu fosse capaz de enxergar através do mundo, e para onde quer que eu olhasse, tudo estivesse queimando. Eu podia ver Galantyr lutando no meio da massa de inimigos, abrindo caminho em minha direção. Fixei meus olhos no portal. Ele parecia muito frágil, agora que eu o compreendia. Uma porta feita às pressas, frágil e inacabada. Tudo o que eu precisava fazer para fechá-lo era estender minha mão.

Os demônios perceberam o que eu estava fazendo e tentaram mudar de alvo. Eu podia senti-los se aproximando, mas Galantyr foi mais rápido. Ele se posicionou às minhas costas. Os inimigos avançavam e caíam sob os punhos do Acorrentador, sua fúria crescendo a cada golpe. Sua ira alimentava o fogo em minhas mãos, derretendo o portal com mais intensidade a cada demônio derrotado. As chamas se tornaram azuis no momento em que Galantyr derrubou o último deles, batendo com os punhos fechados de novo e de novo sobre o corpo da criatura, até que ela parasse de se mexer. Quando não havia mais nada que pudesse ser morto, as chamas na minha mão começaram a diminuir. A única coisa que restava do portal era a areia que havia sido jogada em nosso mundo pelo vento.

Assim que a fúria se dissipou, o mesmo aconteceu com nossa conexão. Eu já não era mais capaz de sentir a dor de Gal, embora a minha própria já fosse o suficiente. Aqueles escombros deviam ter feito algum estrago.

Eu via o mundo pelos meus olhos, novamente. O luar entrava pelo buraco recém aberto no teto do pavilhão, nos mostrando um caminho por entre os corpos em direção à saída. Galantyr estava um caco, mas não disse nada. Sua respiração pesada era o único sinal de sua presença ao meu lado.

Davi nos esperava do lado de fora. Fiquei surpresa por ele ter saído sem nenhum arranhão. Se eu não estivesse tão exausta, teria percebido que havia algo errado. Ele não demonstrou nenhum interesse em nossa presença. Seu olhar estava fixado em uma figura que se aproximava.

Elifas vinha devagar, marcando o ritmo dos passos com o choque das palmas das mãos uma contra a outra.

— Parabéns, parabéns para vocês todos.

Davi tentava parecer apático, mas ele não me enganava mais. Eu sabia o que havia por trás daquela máscara inexpressiva. Ele disse:

— Você nos deu uma chave falsa.

— Evidente que sim — Elifas respondeu. — Vocês deveriam estar mortos agora.

Precisei me afastar de Galantyr quando seu corpo começou a aquecer novamente. Isso também chamou a atenção de Elifas.

— Me diga, Galantyr. Tem algo diferente em você, mas eu não consigo dizer exatamente o que é. Você parece meio…Não sei. Desprotegido?

— Eu não preciso me esconder atrás de um contrato, Elifas.

— Ah, você precisa, sim.

Nós havíamos acabado de sair com vida de uma situação quase impossível. Até mesmo Davi, que não havia feito nada, estava exausto. Por isso, quando Elifas ergueu a mão em direção a Galantyr, não havia nada que pudéssemos fazer. O calor que emanava do demônio ao meu lado se dissipou subitamente. Galantyr avançou com dificuldade na direção da mão aberta em forma de garra de Elifas, lutando contra uma força invisível. Ele não havia percorrido metade da distância quando suas pernas cederam. Galantyr tombou sobre os joelhos, soltando um urro de desafio que morreu assim que Elifas fechou o punho.

avataravatar
Next chapter