7 A Dúvida

Se eu soubesse que tudo aquilo iria acontecer depois de abrir o Café, teria dito para Tatiana que havia me enganado, e mandado ela embora antes de Galantyr entrar pela porta e mudar as nossas vidas. Por isso, fico feliz de ter entrado nessa sem saber de nada, e poder contar com ela ao meu lado. Mesmo nos piores dias, a presença de Tati garantia que tudo ia ficar bem.

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Assim que entrei no Café, a voz reconfortante de Tati, assumindo um ar um tanto quanto forçado de mistério, veio me receber.

— Seja bem-vinda, viajante. Os espíritos me disseram que você viria!

Sua roupa era um amontoado de panos roxos, combinando com um véu para compor o que eu imaginava que seria a indumentária de uma cartomante. Seu olhar divertido e o sorriso a fizeram sair da personagem quando me aproximei e lhe dei um abraço.

— Por onde tu andou, viado? Quase tive um treco quando tu disse que tava no hospital!

Eu não sabia por onde começar a explicar, sabendo que teria que contar pelo menos um pouco de tudo o que estava por vir. Decidi abusar um pouco mais da paciência da minha amiga e ir logo resolver o problema com Galantyr.

Ele me esperava no lugar de sempre, aquele sorriso odioso ainda estampado no rosto. Quase morri de susto mais uma vez quando a mão gigante se ergueu do chão para pegar o contrato que eu lhe estendia. O papel começou a queimar praticamente assim que tocou a pele do demônio, e em poucos segundos tudo o que havia em sua palma era uma pequena nuvem de fumaça.

— AI, MEU DEUS. COMO É BOM ME LIVRAR DESSA TRALHA — ele disse, enquanto eu presenciava pela primeira vez a sua forma de demônio se mover livremente.

O lustre chacoalhou em desespero quando Galantyr se espreguiçou, os olhos fechados e os chifres batendo de leve no teto.

— Ei! — eu disse. — Cuidado aí! E a sua parte do trato?

— VAMOS DAR UMA VOLTA. SE VOCÊ QUER QUE EU TE AJUDE, CAMINHE COMIGO.

— E como você vai fazer isso, nesse estado?

Galantyr olhou para baixo, em minha direção, e eu pude sentir a vibração subindo pelas minhas pernas quando o seu corpo começou a tremer. Eu já tinha uma ideia do que viria a seguir, e já estava com as mãos apoiadas para pular para o outro lado do balcão quando a vibração cessou de repente, interrompida pelo grito de Tati:

— Escuta aqui, ô guampudo! Se você vai fazer aquela coisa de explodir e ficar gostoso, vai lá pros fundos!

Você já viu um demônio fazer cara de nojo? A melhor forma que consigo encontrar para explicar o que eu vi é a expressão que um gato faz ao cheirar algo estranho. Mas por mais incrível que pareça, eu vi Galantyr se arrastando para a parte de trás do Café e se espremendo pela portinha que leva aos fundos. Olhei para Tati de boca aberta, mas ela apenas deu de ombros e piscou para mim.

Através da porta, nós ouvimos de novo aquele som que lembrava um tomate super crescido sendo pisoteado por um gigante, e depois de um instante Galantyr voltou para o café em sua forma humana.

— Satisfeita? — ele olhou de atravessado para Tati, que apenas concordou sem virar a cabeça na direção dele.

Galantyr foi em direção a porta, e eu virei para Tati em busca de algum tipo de apoio. Ela olhou para mim por um segundo antes que seus olhos começassem a se revirar, e o seu pescoço pendesse para trás. Assustada, tentei me aproximar de minha amiga, mas ela foi mais rápida. Sua mão se ergueu de súbito, com o dedo indicador apontando para mim, e uma expressão furiosa havia tomado conta do seu rosto. Em uma voz que eu não reconheci, ela disse:

— Você! Eu vejo… Muita treta em seu futuro.

Meu queixo caiu, e Tatiana começou a se dobrar de tanto rir. Depois de tudo que eu havia feito ela passar, e agora com mais essa escapada bem na hora de abrir o Café, eu não podia nem ficar brava com ela.

— Tá tranquilo Lívia, vai lá. Além do mais, agora eu tenho um ajudante!

Como se estivesse esperando sua deixa, Pólux saiu de trás do balcão… Vestindo meu avental. E essa foi a minha deixa para dar as costas e seguir Galantyr na rua, antes que algo fizesse eu me arrepender de tudo aquilo.

Meu rolê com Galantyr foi bem mais tranquilo do que eu esperava. Saí por aquela porta imaginando uma mistura de Laranja Mecânica com a cena do gênio no final de Aladdin, o demônio correndo pela cidade e chutando velhinhos enquanto eu tentava apaziguá-lo. Eu o acompanhei em silêncio o quanto pude, enquanto Galantyr andava de um lado para o outro na rua. Às vezes, ele parava em frente a uma vitrine, ou olhava para a placa que indicava o nome de alguma loja, e seu olhar parecia perdido. Uma parte meio esquisita de mim achava aquilo ainda mais triste do que vê-lo chutando velhinhos.

— Então, o que você quer fazer? — não aguentei, precisava acabar com aquela cena deprimente.

Ele olhou para mim e piscou lentamente, com a boca meio aberta e as sobrancelhas erguidas. Aquela mesma parte estranha de mim achou meio fofinha a expressão idiota no rosto do demônio. Eu logo percebi que ele não tinha uma resposta, então, para não deixar ele ainda mais constrangido, o peguei pela mão e saí andando.

— O inverno tá chegando. Se você ficar andando por aí com só isso de roupa, as pessoas vão achar estranho.

Entramos em uma loja com um letreiro em neon que dizia "Toca do Rock". É o tipo de lugar onde a Tati costuma comprar suas roupas (isso, ou uma loja de fantasias) e eu achei que o estilo combinava com Galantyr. Fiquei assistindo enquanto ele passava a mão de forma tímida pelos cabides, os olhos correndo de uma estampa para a outra como se estivesse cercado de inimigos. Era um desastre.

Decidi intervir antes que ele acabasse explodindo. Escolhi uma jaqueta e alcancei pra ele, que vestiu sem protestar. Ficava bem nele. Bem demais, até.

— Ok, tira isso! Vamos levar.

Um breve momento constrangedor se deu em frente ao caixa, um velho grande com um rabo de cavalo que nos olhava através de óculos escuros. Eu encarava Galantyr esperando ele fazer a mágica dos demônios e me entregar o dinheiro. Tive que pedir, no que ele, em um gesto surpreendentemente humano, colocou a mão nos bolsos e os virou do avesso.

— Eu não sou esse tipo de demônio — ele disse — que costuma pegar contratos relacionados a dinheiro. Eu costumo trabalhar só com proteção, assassinato ou captura de demônios menores.

Fiz um gesto para ele calar a boca. Me virei em direção ao caixa, que já devia estar imaginando que nós éramos dois malucos. O velho estava sorrindo e balançando a cabeça para Galantyr, fazendo um sinal de chifrinhos com a mão. Paguei no cartão.

Sentamos em um banco na saída da loja, de frente para o calçadão.

— E agora, Gal? Posso te chamar de Gal?

— Se você me der 10 reais, pode.

— Pra quê você quer dinheiro? — perguntei.

— Vou comprar um sorvete — ele disse. Tinha uma máquina do outro lado da rua — Depois disso, a gente pode voltar pro Café.

Gal atravessou a rua e voltou com duas casquinhas, me passando uma delas junto com as moedas do troco. Provei a minha.

— Isso aqui tá com gosto de merda! — as palavras escaparam da minha boca. Tentei identificar o que havia de errado. A casquinha era de chocolate.

Um sorriso despontou no rosto do demônio.

— Isso é só pra você entender — ele falava com a cabeça estirada para trás no banco, admirando o azul do céu — que trabalhar com demônios nunca sai barato. Tudo o que você fizer a partir de agora, mesmo que pareça bobagem, vai mudar sua vida para sempre.

Joguei a casquinha na lixeira ao lado do banco, meu humor indo por água abaixo. Era um jeito meio idiota de passar um sermão, mas ainda assim, efetivo: as palavras de Galantyr ficaram comigo por muito tempo depois daquele dia.

Alguma coisa me incomodou. Olhei pro lado e ele estava me encarando. Seu olhar me causava desconforto, mas eu não conseguia desviar.

— Você sabe que nós não precisamos fazer nada disso, né? — sua voz soava esquisita, pontuada por tons agudos demais, que não combinavam com ele. Era quase como se estivesse suplicando. — Eles vão achar outros pra resolver o problema. Nós podemos sair daqui agora e ir para qualquer lugar, sem dever explicações para ninguém.

As palavras chegavam aos meus ouvidos como um feitiço. Mesmo sem conhecer aquele cara, mesmo sabendo o quanto ele poderia ser babaca… Por um segundo, minha mente navegou na possibilidade do que ele me oferecia. Mas então eu lembrei do Café. De Tati. Das pessoas e demônios que encontravam alguma felicidade naquilo que estávamos oferecendo. Eu tinha descoberto algo bom, ali. E acima de tudo, haviam pessoas contando com a nossa ajuda.

— Eu dei minha palavra, Galantyr. E você me deu a sua. — me levantei — Vamos voltar.

Fui na frente. Eu podia sentir a forma como ele me olhava, vindo logo atrás.

— Se é o que você quer…

Os passos dele cessaram de repente. Olhei para trás e ele estava congelado, a cabeça meio inclinada, como se estivesse ouvindo algo.

— Acho melhor você fechar o Café um pouco mais cedo, hoje. Vai precisar descansar para amanhã.

— Porquê? — perguntei.

— O pai de Davi encontrou a chave. Eu consegui sentir.

Na hora eu não percebi, só registrei a informação em algum lugar antes de seguir adiante. Mas lembrando agora, era tudo muito evidente. A forma como o olho dele tremeu um pouquinho, os pelos dos braços eriçados. Galantyr estava com medo.

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