1 Chalupinha

Sentindo as águas salgadas e finas do mar ondulante, as quais tocavam-lhe o casco de carvalho, a pequenina chalupa sentia-se embriagada e, com a maré alta da noite clara, sentia-se solitária. A tão pequenina chalupa, ou melhor. Ela era a tão pequena chalupinha! Ou pequenina chalupinha… Enfim. De tão pequena, lhe cabiam até três xaréus lado a lado, em seu convés. Ela relembrou, em seu momento só.

Quando a pesca era afortunada a pesar-lhe o casco, cinco xaréus, se não outro pescado equivalente ou menor, cabiam sem se amontoar no convés. Restando os espaços já preenchidos do mastro, timão e o velho pescador de sobrancelhas grossas, a chalupinha voltava à costa, homenageada com cantos de fartura da vila.

Com tantos dias ancorada na costa, a pequena chalupinha sentia-se de fato sozinha, a ponto de apegar-se às memórias. E naquela noite, a qual a maré se dizia alta e refletia a lua em céu aberto, surgiu um garoto corajoso a nadar ao luar. Ele se molhou todo apenas para subir a bordo e quem diria. Ela sentiu nostalgia. Aquele não era o seu fiel companheiro dos dias inteiros de pescaria, na verdade, lhe faltava muito mais músculo e barba, porém ainda sentia nostalgia. Até suspeitava, seria um ladrãozinho de chalupinhas? Para ela, um questionamento trivial que permanecera. Trivial, pois cumpriria seu objetivo, indiferente àquele acima.

Esforçando-se, o garoto puxou a âncora e desceu a vela remendada, passando a velejar.

A pobre chalupinha não podia falar, é evidente! Se pudesse, teria uma boca e tal não seria submersa. E conhecendo-a bem, compartilhando do mesmo corpo, do mesmo carvalho umedecido, quem trouxe suas palavras foi o timão que até pouco depois de ser tocado, dormia — Quer afundar-nos moleque? — Essas nunca seriam as palavras da chalupinha, era apenas um modo de perguntar para onde velejava, vindo do timão ultrajado ao ser usado por qualquer um, se não o velho de sobrancelhas grossas.

— Quero velejar para onde o mar desejar! — Respondeu ao timão grosseiro.

O timão irritadíssimo quietou-se. Todos sabiam que o garoto nunca entrara numa embarcação. Se estava indo conhecer o horizonte em alto mar, deixando-se levar, conheceria as profundezas do oceano.

Algum tempo se passou e assim como previsto, o mar agitou-se e o tempo nublado engoliu a luz.

— É o nosso fim! Isso que dá, nem é navegador e tão menos tem a benção do mar.

O garoto perdeu o pouco controle que tinha sobre a chalupinha, assim como perdeu o fôlego com a mudança repentina do mundo a sua volta. Já estava bem além da costa. Em tal perspectiva, a vila tão amada em que sempre viveu, se tornou um fino fragmento do horizonte.

O fenômeno que passou a ocorrer não era de natureza comum, derivava do abnormal e fictício.

Em contraste com o mar tenebroso, o qual os levou com força para as águas mais distantes. Onde pararam, onde o vento descontinuou, o mar aplanou. O garoto sentiu, em seu coração juvenil, que era indigno de observar nem sequer o movimento glorioso das ondas no determinado momento e para tal o movimento cessou.

Um brilho dourado o coagiu a encarar as profundezas do mar. Lá encontrou um ser que nunca sonharia conhecer, o que brilhava dourado ao fundo era um grande peixe dourado, tão brilhante a emitir luz própria, quase que tangível.

Sendo dourado, e do mar, o chamaria de dourado-do-mar. Mas este não poderia ser, outro peixe já carregava com sigo este nome, e não era tão esplendoroso em suma característica para comparar-se com qual estava lá. Um degrau acima em magnificência bastava, o peixe deveria ser chamado de áureo-do-mar.

Outro áureo-do-mar então surgiu, eram ambos do mesmo tamanho, largos a cobrir metade da chalupinha com folga.

Questionou-se vendo ambos os peixes o rodeando em alto mar. — O que eles estão fazendo? — Porém não tinha a resposta e o timão continuou calado.

A tão inércia acabou. Seja o que for – A existência além dos peixes –, cansou-se da ausência de movimento. A chalupinha seria engolida pelo redemoinho que se formou e seu timão embora silencioso estava a se despedir de sua suposta vida.

Era o fim, a princípio. E a água assumiu forma além da ação da fluidez. Fora toda essa perturbação, e a ausência da mesma por completo, apenas um capricho? É uma trivialidade sem resposta.

Com uma mão nada além de molhada, um corpo de água em espécie, a medíocre chalupinha foi erguida sobre o vórtex de correntezas.

Surgiu para o garoto, um rosto feminino cor do mar. Os dois áureos-do-mar chamativos dentro dele nadaram até sua fronte. Os olhos eram as pupilas das quais enxergava o mundo e as escamas radiantes, a clara feita para ser chamada de divina e enriquecida ao invés de uma simples alva.

— Não ouse fita-la moleque! — Assim o timão o avisou, deixando o silêncio de lado.

Temendo as consequências, o garoto que já estava ajoelhado tentando segurar-se do momento de turbulência, desviou o olhar. Tentou se esconder sob o braço como um animal que tentava ocultar sua presença enterrando a própria cabeça.

E a existência se pronunciou:

— Desnecessário. Olhe-me jovem. Por qual motivo vieste a cruzar o horizonte?

— Não há motivo. — Disse timidamente.

A dona de toda a magnificência líquida, o encarando, pronunciou com seus lábios salgados.

— Eu sinto luto em ti. — Comovendo o remorso sobre o garoto.

— O meu pai era o dono desta chalupa.

Vendo-o ela compreendeu. É preciso divagar, mesmo que pelo mar, para chegar a uma conclusão. É algo de profunda significância até em sentidos mórbidos. Muitos assim fizeram, como ele, deixando o mar leva-los para uma resposta.

— Lamento por ti. Mas está na hora de voltar, os lábios teus estão secos já. Assim como teu pai, será abençoado por mim. Então vá!

Desmanchando-se, uma onda levou a chalupinha até onde deveria voltar.

Com a passagem do tempo, a dias após o encontro raro, o timão, que presenciou tanta benção, aceitou-o como navegador. O pequeno garoto se tornou, assim como o homem de sobrancelhas grossas cujo era seu pai, um afortunado pescador.

O garoto deixou de ser pequeno, atribuiu muito valor a chalupinha, tanto por ser herança de seu falecido pai, quanto pela própria experiência. E após toda essa viagem lutuosa, que lhe concedeu a benção do mar, percebeu que a mesma não se tratava da pesca, e sim do quanto cresceu devido a tal.

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