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Instrumento de batalha

Fui forjada no fogo da batalha, assim como a lâmina de uma espada, fui espancada e moldada até que tivesse a forma exata de um instrumento de guerra afiado e mortal. No meu clã, os homens e mulheres são iniciados nas artes da guerra desde o primeiro dia que começam a caminhar.

Os treinos são impiedosos, e nos fazem aptos ao que encontraremos durante cada confronto; para o clã não importa se somos crianças, jovens, homens, mulheres, adultos ou idosos, todos ao pisar na arena são induzidos a lutar em combate real; pois, se o inimigo adentrar as muralhas da cidade, cada um deve ter a oportunidade de poder defender seu povo e lutar por sua vida.

Recordo-me de cada duelo que perdi, e cada embate que deixei meu oponente no chão implorando por misericórdia enquanto crescia. Segundo meus pais e meus instrutores, sempre — desde os primeiros anos de vida — sobressaí-me dentre os meus companheiros de batalha, mesmo sendo uma criança, quando entrava na arena de treino, meus movimentos: perfeitos, precisos e letais causavam assombro. 

Nosso clã é composto, quase que em sua totalidade, de guerreiros, em períodos mais pacíficos dedicávamos parte do dia a outras atividades para auxiliar nossa comunidade, mas não se engane, até uma senhora idosa costurando em frente de casa, tem tanto sangue nas mãos quanto qualquer um dos guerreiros jovens e ativos. 

Nossa cidade atualmente é linda e próspera, mas nem sempre foi assim, tantas batalhas ao longo dos séculos deixaram marcas que quase não podem ser apagadas das paredes e rochas no entorno. As coisas só começaram a mudar quando Aquileutes, nosso atual líder, assumiu o clã com a morte de seu pai em batalha. 

Depois, que nosso líder jurou devoção ao Deus da Guerra, Ares, as batalhas contra nosso povo, que são intensas e sangrentas devido à disputa por território, tornaram-se ainda mais violentas; porém, a nossa vitória passou a ser uma constante. A sucessão de conquistas fez com que exaltássemos Ares, acima de todos os outros deuses, por isso, na parte central da cidade foi construído um majestoso templo em sua honra.

O templo, uma imponente construção com colunas colossais, abriga em seu interior uma estátua do Deus Ares magnifica, tão realista que parece que seus olhos nos observam a cada passo que damos ao interior do templo indo ao seu encontro. Lá, aos seus pés, em um pedestal que confere altura suficiente para que nos faça sentir insignificante diante de sua figura sobrenatural, oferecemos nossos filhos recém-nascidos a sua proteção; e colocamos nossas oferendas e espólios de guerra, os quais, em geral, são o sangue e as armas de nossos inimigos. 

Assim, como os outros, eu também fui ofertada a Ares no meu nascimento, meus pais me deixaram aos seus pés durante a noite, no ritual de proteção, e anos depois, quando o sangue sagrado começou a fluir do meu ventre, novamente passei pelo ritual, jurando lealdade, submissão; e, além do meu sangue, o sangue de cada inimigo que cruzasse o meu caminho durante a jornada da vida. 

As sacerdotisas do templo, me viam ali com frequência por dois motivos, o primeiro era de conhecimento público, eu tinha mais espólios de guerra do que qualquer outro guerreiro, eu era responsável por grande parte dos itens dispostos no templo em honra a Ares, minha habilidade de batalha me tornou uma assassina feroz, habilidade a qual me conferiu um lugar de prestígio no clã entre os guerreiros, e uma atenção não desejada do filho de Aquileutes, Isidório, que me cortejava com insistência. 

Isidório, seria o próximo líder, além de guerreiro exímio, sua beleza atraia a atenção e desperta o desejo das mulheres do clã, as quais espalham aos quatro ventos as aptidões na arte da sedução que ele possui, principalmente quando estão juntos entre quatro paredes. Eu nada tinha contra Isidório, porém, em mim, ele não exercia atração.

O segundo motivo das minhas idas ao templo, eram um segredo, o qual apenas Ádria, minha amiga e sacerdotisa, conhecia. Era esse segredo que não deixava com que eu permitisse os avanços de Isidório, apenas Ádria sabia que em uma de minhas idas ao templo, para levar minhas oferendas de guerra a Ares, eu havia deixado que o desejo tomasse conta do meu corpo e possuísse minha mente.

Naquela noite, meses atrás, eu havia chegado de um entrave sangrento na região norte de Calamáus, ao adentrar em nossa cidade, dirigi-me imediatamente ao templo, carregando comigo várias armas, e jarras repletas do líquido viscoso e rubro, retirado das veias dos guerreiros que pereceram sob a minha lâmina. Após banhar os pés da imagem de Ares com o sangue dos meus inimigos, evitando olhar em seus olhos, os quais me davam medo desde criança, entoei os cânticos abraçada as armas que havia conquistado e trazido como presente.

Repetidamente pedi que o Deus da Guerra continuasse a proteger-me durante a batalha, que sua ira possuísse meu corpo e derrotasse cada guerreiro que se colocasse contra mim no campo de batalha, repeti os cânticos insistentemente até que adormeci ajoelhada em frente à estátua da divindade. Senti quando braços fortes me erguiam do chão, sobressaltada acordei, despertando a guerreira em mim, pulei de seus braços e prostrei-me em posição de luta em frente ao homem, sua estatura e postura não deixava dúvidas que ele era um guerreiro como eu. 

Em meu salto parei diante das armas dispostas no chão, peguei uma lâmina e a direcionei ao guerreiro, que sorriu e levantando as mãos para distrair-me, pisou no cabo de uma espada fazendo-a voar, ganhando altura, até cair encaixada em sua mão. — Calma aí, guerreira. Não quero duelar com você, mas o farei se for preciso para abrandar sua ira. — Ele murmurou me olhando com um semblante descontraído. 

— Por que me tocou, tirando-me do chão? O que quer? Você não é um dos guerreiros do clã, eu não reconheço seu rosto. — Falei entredentes tentando não deixar transparecer meu medo diante da sua estatura que era o dobro da minha. Meu maior receio dava-se por ser pega desprevenida, ele poderia ter cortado minha garganta enquanto eu cochilava. 

— Ia apenas levá-la até um dos quartos vazios das sacerdotisas, para que você pudesse descansar com maior conforto. Você estava dormindo há algum tempo no chão do templo. Eu não sou do clã, não sou um guerreiro aqui, sou um prisioneiro que serve ao templo. 

— Então serviçal, pela sua audácia de colocar as mãos em mim enquanto estava adormecida e ousar empunhar uma espada em minha direção, cortarei suas mãos fora. Contudo, te darei a chance de defender-se em um duelo justo, se me ganhar você pode continuar com elas e não reportarei sua indiscrição as sacerdotisas. Estamos de acordo?

Ele gargalhou, e sua risada fez meu coração disparar, fazendo me desejar vê-lo ajoelhando-se aos meus pés em total submissão. Apesar de sua posição inferior como prisioneiro e serviçal do templo, sua beleza despertava em mim uma atração lasciva; e, ao mesmo tempo, raiva. Era um misto de sentimentos que eu só poderia aplacar com uma boa luta. 

Avancei e ele defendeu-se com sublime destreza, ele era um guerreiro, poderia estar na posição de serviçal, mas eu não tinha dúvida pela perícia que demonstrava a cada passo da nossa dança mortal que ele era o melhor guerreiro com quem eu já havia lutado. A cada estocada que eu deferia, ele defendia-se e atacava sem ao menos ofegar. 

A raiva, tornou-se diversão, e minha gana por derrotá-lo tonou-se uma preliminar de todo ato de sedução. Eu o queria, o desejava, a violência com que duelávamos incitava em mim um instinto promiscuo; e o ardor que emanava de meus olhos refletiam-se nos dele, e transbordando de desejo, finalizando nossa dança, ele ousadamente me aprisionou em seus braços, desarmando-me e me beijando. 

Retribuí cada mordida que ele dava em meus lábios de maneira faminta, abraços desesperados, e olhares libidinosos, nossas respirações estavam ofegantes antes mesmo de nos entregarmos por completo. Ele levantou-me e entrelacei as pernas no seu tronco, segurei com força em seus cabelos negros que atingiam quase a altura dos ombros, e deixamos esquecidas as armas pelo chão.

Ainda comigo entrelaçada em seus braços, ele nos levou para dentro do templo onde ficava os quartos privativos das sacerdotisas, e lá nos entregamos a paixão que nos consumia. Durante toda a noite, em seus braços me senti como uma divindade, contemplada e amada com devoção, até que o esgotamento me atingiu e me fez adormecer emaranhada em seu corpo.

Na manhã seguinte, acordei sozinha na cama, sentindo o seu perfume almiscarado espalhado por todo meu corpo. Ádria, que passava pelo local, estranhou ao ver-me ali completamente despida e questionou-me o porquê. Contando o que havia acontecido, ela empenhou-se (extremamente empolgada) em ajudar-me a descobrir a identidade do serviçal e guardar o meu segredo; pois, aos guerreiros do meu clã — principalmente as mulheres — não era permitido envolver-se com os prisioneiros para não misturar o sangue de nosso clã com o de outras tribos, o enfraquecendo, e gerando futuros guerreiros débeis.

Para o nosso total espanto, dentre as centenas de prisioneiros que o templo mantinha como serviçal, ele não foi encontrado, ou não o queria ser (pensei). Alguns meses, passaram-se até outra batalha, a qual vitoriosa, vim novamente ao templo trazer minhas oferendas a Ares, entoando os cânticos de devoção ao Deus da Guerra, e dessa vez acordada, ouvi sua voz rouca vinda das minhas costas. — Olá, novamente guerreira. Senti saudades de você.

Virei-me bruscamente, e me deparei com o serviçal que tanto busquei com Ádria, era ele em toda sua glória. Ainda chateada por não o ter encontrado em minhas buscas com a sacerdotisa, falei com amargor. — Onde você se escondeu serviçal? Procurei por você, eu deveria matá-lo aqui mesmo por esconder-se de mim.

— Eu não me escondi de você, eu sou um prisioneiro aqui, nem sempre me é permitido aparecer. Aquileutes me liberta apenas nos dias de batalha, hoje te acompanhei com os olhos durante todo o entrave, talvez não tenha me reconhecido porque estava usando um elmo prateado que escondia o meu rosto. Seu líder não quer que outros saibam que estou lutando em meio a vocês.

— Eu não o vi. — Falei, tentando repassar em minha memória cada luta daquele dia, para ver se resgatava pelo menos um vislumbre dele em meio aos duelos.

— Não tem problema, o importante é que eu te vi. Você estava estonteante, uma Deusa da Morte em todo seu esplendor, se não tivesse que cumprir as ordens de Aquileutes, e auxiliar o seu clã a ter a vitória, eu teria a tirado do meio da batalha e tomado seu corpo como fiz da última vez aqui mesmo neste templo.

Suas palavras eram o combustível necessário para deixar meu corpo em chamas, mas dessa vez controlei-me o suficiente para tirar dele as informações que tanto me atormentaram nos últimos meses. — Eu não sei nada sobre você. Por que sendo tão exímio guerreiro deixou-se prender por Aquileutes?

Ele esfregou os pulsos, e pude ver grilhões dourados com inscrições antigas em todo o material. Eu sabia que ele as usava, assim como todos os prisioneiros, entretanto da última vez que nos encontramos não tinha reparado no resplendor do material. — É magia? É isso que ele usou em você?

— Sim, uma magia antiga, a qual me mantém aqui a serviço do seu clã.

As sacerdotisas do templo eram versadas nas artes mágicas, Ádria minha amiga, por exemplo, era uma jovem aprendiz; as sacerdotisas usavam seus dons para cura, prever o futuro, atrair a sorte e emanar força aos guerreiros; mas, usar sua magia para prender serviçais me causava estranhamento. Nunca havia ouvido falar que elas usavam seus dons para isso; os serviçais eram prisioneiros de guerra, membros de clãs, os quais seus guerreiros foram derrotados em batalha.

Meu povo, tinha a prática de destruir suas cidadelas para que eles não se erguessem contra nós novamente, então, trazíamos os membros dos clãs derrotados como espólios para servir nas casas e nos templos, e para identificá-los colocávamos grilhões prateados em seus pulsos. Priorizávamos crianças e mulheres não guerreiras, e alguns homens que pudessem fazer trabalhos braçais que exigissem força, mas ainda estava espantada de Aquileutes ter aprisionado com magia um guerreiro.

— Conte-me sua história. — Ordenei.

Ele olhou para mim, e para a estátua, as minhas costas, eu não ousei desviar o olhar do dele, e esperei.

— Eu não posso. — Ele disse-me franzindo o cenho.

— Não pode ou não quer? Ordeno serviçal, conte-me quem é você e como Aquileutes te aprisionou com magia.

— Não!

Tomada de ódio por sua desobediência e insubordinação, parti para cima dele, com socos e chutes, os quais ele defendeu-se com elegância; em cada golpe eu desprendia todo aquele ódio e frustração que acumulei nos meses que passei o procurando. Eu não iria confessar que senti falta da sua boca sobre a minha, do seu corpo no meu, eu o desejei dia e noite; e aqui estava ele ainda escondendo de mim quem ele era.

Após horas, nesse empasse de golpes deferidos um contra o outro, ele agarrou meus pulsos, imobilizando-me.

— Já basta! — ele gritou. — Eu também estou frustrado, eu queria te ver; e não perderei mais um segundo desta noite duelando com você. — E, ao finalizar seu discurso, ele beijou-me e quando dei por mim estava entregue em seus braços outra vez. Ao fim daquela noite, quando os raios de sol já ameaçavam surgir no horizonte, eu não deixei o sono me levar para a inconsciência, não antes de saber o seu nome.

— Diga-me pelo menos o seu nome, e como faço para encontrá-lo novamente. — Supliquei envolta em seus braços, enquanto ele beijava meus cabelos com adoração.

— A limites para o que eu posso contar. A magia me prende de maneiras que você nem imagina; mas posso contar algumas coisas, para que você possa me ver, assim que desejar, você deve fazer um sacrifício de sangue.

Olhei para ele sem entender. — O sangue de quem tenho que sacrificar? — Perguntei, disposta a fazer qualquer coisa para encontrá-lo novamente.

— O seu. — Ele me disse bastante sério.

— Eu não posso. Ofereci meu sangue a Ares. — Respondi, sentindo a tristeza invadir meu peito.

— Não tem problema, você não irá quebrar nenhum pacto que tenha feito. É no pedestal dele que a magia me prende. Você deve acionar o mecanismo que está no lado direito da base, colocando um pouco do seu sangue no símbolo de Ares, entre a lança, o elmo e o círculo com uma seta em diagonal para cima que está gravado lá, um pequeno alçapão irá se abrir, e lá um artefato — envolto em uma manta de linho branca — esconde uma relíquia que me prende aqui. Você não deve tocá-la; prometa-me!

— Por quê? — Perguntei.

— Para tocá-la é necessário entoar magia, senão ela a matará.

— E o que devo fazer quando o alçapão abrir.

— Deve cortar a veia do braço que empunha a espada, e pingar três gotas do seu sangue e oferecê-lo ao Deus da Guerra, pedindo a visão. E assim, você me encontrará no campo de batalha na sua próxima guerra, e me verá aqui no templo todas às vezes que quiser.

No momento em que ele acabou de explicar o que eu deveria fazer, um sono incontrolável apoderou-se de mim, e me ouvi murmurando em meu sono, "seu nome, me diga seu nome"; até que o calor do seu corpo me deixou e a escuridão da inconsciência me dominou por completo.

Ao despertar, não perdi tempo, coloquei minhas vestes e fui atrás de Ádria, para que me ajudasse a realizar o ritual hoje mesmo. Deixando-me desapontada, ela me disse que o ritual ganharia mais força dali a uma semana, na terça-feira, dia em que a ligação com o Deus da Guerra era mais forte, ouvindo seus conselhos — mesmo tomada de ansiedade — resolvi aguardar.

Uma semana nunca me pareceu tão longa, treinei como um animal recém-saído da jaula e faminto por um pedaço de carne sangrenta. Os guerreiros que duelavam comigo para me proporcionar um combate digno começaram a agrupar-se em trios, e mesmo assim eu os derrotava sem esforço.

Acabei por atrair para mim, a cobiça de Aquileutes por descendentes fortes e dignos de comandar o clã, quando o seu filho já não o pudesse fazê-lo e naquela noite, ao chegar em casa, recebi a notícia, que contra a minha vontade meu pai oficializou minha união com Isidório.

— Vou matar Isidório se ele ousar tocar-me contra a minha vontade, ouviu bem! — Disse ao meu pai, com uma frieza tão grande, que ele se afastou de mim e arregalou os olhos. Meu pai e minha mãe eram guerreiros assim como eu, lutávamos em flancos diferentes, para evitar distrações, e meu pai sabia que quando eu fazia uma ameaça nunca era em vão.

— Yelena, seus filhos com Isidório assumirão o clã, o que mais uma guerreira do seu nível poderia querer? — Disse-me meu pai, como se desposar Isidório e gerar seus herdeiros fosse um presente, e não uma maldição.

Esperei me acalmar um pouco para ir até a casa de Aquileutes, desafiá-lo por armar essa união com meu pai pelas minhas costas. Se ele queria que eu gerasse seus netos, o filho dele teria que me ganhar em um duelo, eu não aceitaria juntar-me a um guerreiro que não lutasse, no mínimo, de igual para igual comigo; e com esse pensamento, um serviçal guerreiro de cabelos negros invadiu minha mente, e desejei, que ele fosse um guerreiro nascido em nosso clã.

Assim, que o sol se pôs, vesti minha armadura de batalha, peguei minha lâmina e adagas mais afiadas e fui até a casa de Aquileutes enquanto meus pais no meu encalço tentavam me dissuadir da minha impulsiva empreitada. — Voltem para casa. Resolverei isso do meu jeito. — Falei para os meus pais, que continuavam me seguindo em direção à residência de Aquileutes chamando atenção dos membros do clã no caminho; os quais, curiosos com a situação, começaram a seguir-nos em uma pequena procissão.

Ao chegar à entrada da casa do líder, gritei. — Aquileutes, líder do clã de Theriarã, eu Yelena, filha dos guerreiros Argos e Selene, o desafio. — Os guerreiros ao meu redor ficaram lívidos. Ouvi entre burburinhos que eu só poderia estar louca.

Aquileutes, acompanhado por seu filho Isidório e sua esposa Jocasta, apareceram a porta. Meu líder, com um sorriso sínico, esfregava as mãos de um jeito preguiçoso como se não soubesse do que se tratava aquele desafio.

— O que deseja Yelena? Veio me agradecer o privilégio de gerar meus netos? — Seu sorriso desdenhoso me enojava, eu o admirei como guerreiro e líder por muitos anos, mas saber que ele usava magia para subjugar outros guerreiros me fez ver outro lado dele, que o fez perder o brilho para mim.

Gargalhei com ironia. — Ao contrário, eu desafio o seu filho em um duelo, se ele me vencer, eu gerarei seus herdeiros, se perder você não mais interferirá nas minhas escolhas de enlace. Aquileutes olhou-me, mirou os guerreiros ao nosso redor, recusar um duelo seria vergonhoso para sua família; ele tinha que aceitar.

Ele pensou por algum tempo, e depois lançou sua resposta. — Pois bem, Yelena. É compreensível, que ele prove seu valor como guerreiro, porém Isidório feriu-se na última batalha e não está em plena capacidade de lutar como você, tornando o duelo injusto. Nossa lei é clara, quando o guerreiro de uma família não pode lutar para provar o seu valor, outro escolhido pela família pode assumir a luta.

Eu ri por dentro, seria mais fácil ganhar essa luta do que eu havia imaginado, eu sabia que não havia no clã nenhum guerreiro capaz de lutar de igual para igual comigo. — Justo! Eu concordo. Chame o seu representante e vamos resolver isso agora!

Ele sorriu sem deixar aparecer os dentes, Isidório ao seu lado estava pálido, tentando entre sussurros provar algum ponto para o pai. Não me interessava o que ele dizia a Aquileutes, eu só queria acabar logo com aquilo.

Abrindo os braços, prestes a divulgar um grande espetáculo, Aquileutes veio em minha direção anunciando. — Meus guerreiros, eu aceito o desafio e convido para representar meu filho Isidório, Heílotes, para ser o meu campeão.

E surgindo, magicamente do meio da multidão, o serviçal do templo apareceu, em roupas de batalha, com um elmo prateado, empunhando uma espada e uma lança para duelar comigo.

Por um instante fiquei sem ação, ele era o único que podia lutar de igual para igual comigo, até mesmo me derrotar. Como se encarnando o próprio Ades, Heílotes adentrou o círculo que se formou em frente da casa de Aquileutes, ficou em posição de batalha e atacou.

Esquivei-me por instinto e empunhei a espada. — Recue e desista, eu não quero lutar com você. — falei baixinho para que apenas ele escutasse.

— Eu não posso declinar, devo obedecer a Aquileutes mesmo contra a minha vontade, estou preso a magia, tenho que lutar. — Disse-me como se tivesse que forçar as palavras a saírem de sua boca.

— Então prepare-se, pois lavarei essa arena com seu sangue. — Disse furiosa e ataquei de forma implacável.

Em um embate nunca visto pelo meu clã, nós duelamos. Ele golpeava e eu defendia, atacando e sendo bloqueada por suas técnicas de defesa peculiares.

O suor gotejava de minha fronte pelo esforço, enquanto ele não aparentava nem um pouco de cansaço; fiz uma finta suave e consegui enganá-lo, e o atingi entre as costelas, fazendo o sangue pingar de suas vestes.

Ele sorriu, como se o corte fosse um presente desejado e não um ferimento mortal. Instigado pelo ferimento, ele atacou com mais sagacidade, e o tintilar das espadas era o único som que se ouviu durante um tempo. Ao redor, visualizei meus pais que me olhavam orgulhosos, como também o olhar furioso de Aquileutes, o qual eu suspeitava que não esperava que eu conseguisse manter-me firme na luta por tanto tempo, e como se a demora de Heílotes me derrotar estivesse o deixando contrariado.

— Heílotes, acabe logo com isso! — gritou Aquileutes, e quando o serviçal virou na direção da voz de seu mestre, eu aproveitei da distração do meu oponente e apliquei uma rasteira, o deixando de costas no chão e apontei a lâmina para sua garganta.

Os olhos do serviçal, por trás do elmo de prata, me olhavam com um desejo indescritível, e perdida naquele olhar, afrouxei o agarre da lâmina. Aproveitando-se do meu momento de fraqueza, ele derrubou-me, desarmando-me, e subindo em cima de mim; colocando uma adaga em meu pescoço e tirando sangue em um corte superficial; depois disso, descaradamente, ele lambeu os resquícios vermelhos que ficaram em sua lâmina para consagrar sua vitória.

Aquileutes extasiado, anunciou a vitória do seu campeão e selou — diante de todo o clã — meu enlace com seu filho para próxima lua de sangue, em uma cerimônia privada no templo em homenagem ao grande Deus da Guerra, Ades. Transbordando uma cólera assassina, aceitei minha ruína, ajoelhei-me diante de Aquileutes concordando com o destino que, a minha derrota, havia traçado para mim.

Após, terminar de acertar os trâmites do enlace, em acordos sobre títulos e finanças entre meus pais e os pais de Isidório, fui até o templo acabar com a raça daquele serviçal traidor. Ele tinha me feito perder o duelo e me condenado a selar uma união com Isidório, eu iria matá-lo, hoje era terça-feira (e mesmo sem Ádria) eu iria realizar o ritual e invocá-lo.

Ao chegar no templo, como eu suspeitava, Ádria não estava lá, a balbúrdia do meu duelo levou-a até a casa de Aquileutes com as outras sacerdotisas. Entrei gritando no templo, indo em direção à estátua de Ares, e como de costume não olhei em sua face, por medo e respeito.

Marchei até o pedestal, agachei-me e encontrei a insígnia e como Heílotes tinha me instruído, furei o dedo com a adaga manchando os símbolos de Ares com meu sangue, e uma luz suave emanou do chão abrindo um compartimento, assim como ele havia narrado, dentro era possível ver a manta protegendo um objeto, o qual desprendia uma luz avermelhada suave. Cortei a mão que empunhava a espada e deixei que três gotas caíssem sob o manto, o qual absorveu o líquido, tornando-se branco novamente.

Então pedi. — Quero vê-lo! Deixe-me ver aquele serviçal traidor desgraçado, para que eu possa estrangulá-lo.

A luz avermelhada ganhou força, tornando-se um vermelho vivo tão resplandecente que cegou minha visão por um breve instante, depois o alçapão fechou-se; e quando olhei para o pedestal, o sangue que manchava o símbolo de Ares, também havia sumido.

Antes que pudesse ouvir sua voz, eu senti sua presença. Virei-me, e lá estava ele, a imagem de um homem derrotado, quase não pude ouvir sua voz baixa, que mal passava de um sussurro. — Perdoe-me Yelena! — Ele me disse olhando para o chão.

— Perdoar? Você tem ideia do que fez? Você me distraiu no último minuto e me entregou em uma bandeja de prata para Isidório. Por quê? — E mais uma vez, um misto de tristeza e raiva embaralhavam-se dentro de mim.

— Eu não posso evitar, devo obedecê-lo. Já te disse, sou um prisioneiro de Aquileutes, e não sabia qual era o preço, não fazia ideia que, o prêmio do duelo, era entregar você a Isidório.

— Agora sabe. Você me condenou a um enlace infeliz.

— E o que posso fazer, Yelena, diga-me? — Ele disse com um semblante torturado e caminhou em minha direção, abraçando-me.

Com a voz embargada, quase não consegui responder ao seu questionamento. Então, falei, com a voz tão baixa, que mal passava de um sussurro. — Liberte-se dessa prisão, e lute por mim! Eu quero você. Quero você em minha cama todas as noites e lutando ao meu lado nas batalhas durante o dia, não quero Isidório, eu quero apenas você!

O seu abraço ficou mais forte, pude ouvir seu coração acelerar. — Yelena, a única pessoa que pode me libertar é a minha irmã, e eu duvido que ela vá me ajudar sem que eu tenha que dar algo em troca. Nós a muito tempo brigamos pela atenção de nosso pai, e a mágoa que temos um pelo outro é enorme.

— Então, eu vou até a sua irmã pedir que venha te socorrer. Lutarei com ela se for preciso. Por favor, Heílotes, deixe-me pelo menos tentar?

— Não me chame por esse nome pejorativo que Aquileutes me deu.

— Então, como devo te chamar, você nunca me disse o seu nome. — Vi quando os olhos dele miraram a estátua atrás de mim, e virei-me para ver o que tanto chamava sua atenção, criando coragem para mirar o rosto da imagem; e ali, esculpida em uma cópia fiel, estava o rosto dele, o serviçal, o guerreiro habilidoso, Heílotes de Aquileutes era Ares o "Deus da Guerra".

— Sim, não posso pronunciar meu nome para você, mas o choque em seu rosto me diz que você descobriu quem sou de verdade.

— Como isso é possível? Não pode ser.

— Não posso te dizer, faz parte da magia que Aquileutes usou para me aprisionar e me tornar um mero serviçal.

— Como Aquileutes pode fazer isso? Você é um Deus e ele apenas um homem.

— A verdade, Yelena, foi que eu me deixei enganar por Aquileutes, e fui orgulhoso demais para pedir ajuda a qualquer um dos meus irmãos, durante todos esses anos que estive aqui. Mas por você, eu deixarei meu orgulho de lado. Vá até a minha irmã, e diga a ela que pagarei o preço que ela quiser pela minha liberdade, e quando eu estiver livre das amarras de Aquileutes, eu te livrarei desse enlace com Isidório.

— A qual de suas irmãs devo invocar?

— Aquela que ocupou meu posto depois que Aquileutes prendeu-me aqui! A Deusa da Sabedoria, e atualmente, perante o panteão, a Deusa da Guerra, Atena. Vá até seu templo, e leve isso consigo. — Ele retirou um medalhão preso em seu pescoço, o qual pendia escondido sob suas vestes, o colocando em mim.

— O que é isso? — Perguntei olhando admirada a peça de ouro com o símbolo de Ares incrustado em alto-relevo.

— Com esse medalhão, assim que você adentrar o templo de minha irmã, ela virá te encontrar. Ela sentirá minha essência em você, diga a ela que preciso de ajuda e que pagarei o preço.

Assim que ele acabou de falar, os raios de sol começaram a surgir pelas colunas do templo iluminando a escultura feita em sua honra, seu corpo até então sólido ao meu toque começou a se dissipar em névoa.

— Para onde você vai? — A angústia por vê-lo desaparecer em minha frente sobrecarregou meus sentidos.

— Preciso ir, Aquileutes está me invocando.

Ódio, puro e mortal, era o que me invadia agora. Eu faria o que fosse possível para libertar Ares, e depois arrancaria a cabeça de Aquileutes de seu corpo. 

 

 ***

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