2 A Determinação de Agnes

Os olhos semicerrados tentavam enxergar algo além das portas e da janela de vidro. O barulho suave e o movimento lento no caminho esburacado a deixava calma, era quase como um sonífero. A paisagem mudava frequentemente, as árvores eram substituídas por prédios e folhas secas que não paravam de voar, parecia que ainda havia uma transição entre o outono e o inverno. Talvez fosse isso mesmo, tudo na vida de Agnes agora se baseava naquela única palavra: Talvez.

— Estamos chegando na casa de Kate. — disse Ellen, sua voz era tão doce e suave, quase não se notava. — Não sei se você realmente quer vê-la agora, mas ela também ficou preocupada quando tu sumiu ontem.

Agnes suspirou, os ombros caíram para frente, cansada de muitas coisas, de muitas situações, de muitas emoções acumuladas que nunca foram jogadas para fora, mas só guardadas na caixa do seu interior.

— Acho que eu tenho desaparecido bastante. — Sorriu ao dizer isso, não havia em si um sentimento específico, mas ela sentiu a necessidade de sorrir.

— Sim. — Mordeu o lábio inferior, ela queria dizer muitas outras coisas, mas sabia que naquele momento não haveria efeito algum. — Você ao menos tem prestado atenção nas aulas? Sei que deve estar difícil.

Agnes riu baixo, sem humor, sem emoção, uma risada vazia.

— Sim. — A ponta de seu dedo arrastou sob a janela escurecida pela noite, se ao menos estivesse esbranquiçada ela poderia desenhar ou escrever alguma coisa, mas nada havia ali se não o próprio reflexo da noite.

Ellen não era paciente, mas naquele momento ela sentia tanta paz, tanta que nunca sentira em seus longos vinte e dois anos de vida, ela nem ao menos foi capaz de brigar com Agnes.

Suspirando forte, sua atenção foi ganhada por sua amiga, que aos poucos se tornava uma estranha.

— Não se deixe por vencida. Seja lá quem for sua inimiga, mas continue a sorrir, continue sendo quem você é. — Respirou fundo. — Eu não quero ser amiga de um cadáver, de uma marionete.

Agnes piscou uma, duas, três vezes. Ela não tomaria consciência sobre seus atos naquele exato momento, mas naquele instante ela acordou para uma coisa.

Ela não deveria se sentir daquela forma. Quem poderia fazer aquilo com ela, se não ela mesma?

A garota bufou. Odiava não ter razão, mas aquele seria o único momento que teria que concordar com Ellen.

— Você está malditamente certa. — murmurou, não era fácil aceitar que alguém estava certa e ela errada.

Ellen riu.

— Claro que estou. — Balançou os ombros para frente e se jogou contra o volante do carro, a buzina soou alta.

***

Enquanto observava suas duas amigas conversarem baixo, ela pensava nas mesmas coisas de antes quando estava no parque.

Ela não prestava.

Ou prestava?

Em si, ela sabia que a vida que tinha era completamente diferente do que viam e falavam. De fato ela não amava ninguém, apenas a si mesma, e aquilo tinha funcionado muito bem, sempre tinha funcionado. Ela não conseguia esquecer aquele desgraçado, o idiota do Lucca, o cara que insistiu em dizer que ela não o amava, que ela não amava ninguém. Aquilo era um equívoco.

Mas Ciro tinha razão em uma coisa, ela era uma maldita vadia.

"Uma sereia. Ilude, puxa pro mar e mata", pensou consigo mesma.

Riu.

Não, aquilo não era ela, Eloá havia dito que ele apenas disse aquilo porque ela não havia correspondido suas declarações excessivas.

Ela revirou os olhos.

O que ela havia perdido? O que lhe faltava?

Kate pôs uma mão sob seu braço, uma mão quente e acolhedora, embora em um determinado momento, sua língua esperta e inquieta a havia magoado. Em quem confiar?

Ninguém.

— Agnes. — Seus olhos se encontraram rapidamente, e Kate notou que seus olhos diziam muito sobre o que se passava em sua cabeça.

Suas mãos deixaram de tocar sua pele, seu sorriso consolador desapareceu e deu lugar a uma expressão séria.

— O que você tem? Não tem como eu te ajudar se você não dizer o que sente. — murmurou, um tom mais baixo e mais sensível, queria ela mostrar que estava completamente acessível a ela.

O canto de seus lábios se ergueram em um pequeno sorriso, um muito inofensivo, mas Kate pensou se aquilo era mesmo real.

A vida da garota sempre fora exposta por pessoas a sua volta, por pessoas que gostavam de fingir se importar. Perdas sempre serão perdas.

— O que você acha? — Ela fez uma pausa inquietante. — As pessoas falam tanto que nem mesmo eu consigo diferenciar o meu eu, do eu que os outros tanto gostam de falar. — Ela puxou uma respiração forte, alta e profunda. — "Agnes, a vadia ambulante", "Agnes, que não ama ninguém e só ilude", "Agnes, da em cima de todo mundo e não pega ninguém", Agnes...

— Eu entendi. — Kate espremeu os olhos, e a cortou antes que continuasse a dizer aquelas frases horríveis, porém, reais.

Kate já havia escutado algo do tipo, mas nunca fizera nada pra silenciar as vozes que tanto se erguiam. Agora era tarde demais.

— Você entendeu? — Agnes inclinou a cabeça para o lado, o canto dos lábios ainda permaneciam erguidos em um sorriso trêmulo, defeituoso e com um sentimento visível, tristeza. Ou era decepção? — Seus amigos são os únicos que falam assim de você. Você entendeu isso? Porque se for diferente disso, está errado e você não entendeu nada. — Suspirou, as mãos espalmadas na mesa de madeira a fez olhar para as próprias mãos.

As unhas bem feitas lhe lembram da dedicação que tinha em se cuidar, do cuidado que sempre estivera, nem que fosse pelo menos uma vez na semana. Uma vez era o suficiente para ela.

Kate se calou.

Ellen arregalou os olhos, em choque, ela sabia do que se tratava agora.

— Mas você se esforçou muito para que fosse real. — Enrugou a testa. — Eu não consigo entender. — Apertou sua mão uma na outra.

— As pessoas falaram isso, e eu fiz que fosse real. — Deu de ombros. — Não é mais fácil viver da forma que dizem, do que tentar desfazer as acusações?

Ellen cruzou os braços e olhou atentamente para as mãos espalmadas na mesa.

— Eu acho que entendi. — Sorriu.

Agnes sorriu de volta.

— Mas... — Kate se calou, não fazia sentido, nada parecia completar as lacunas que haviam em seu cérebro sobre aquela situação.

— Você pelo menos tem noção do que perdeu há um ano atrás? — Ellen arriscou em perguntar.

Agnes inclinou a cabeça para trás, seus olhos focaram no teto sem cor, os olhos brilhantes que queriam derramas rios de lágrimas, mas conseguiu segurar ao olhar para o branco do alto. Ela sabia o que tinha perdido, quem não?

— Minha sanidade. — brincou rindo, era uma meia verdade. — Eu não sei ao certo o que eu perdi, mas eu sei que o que sou hoje, não era o que eu gostaria de ter me tornado.

— Quem você gostaria de ser?

A pergunta que Kate fizera podia ser simples, mas para Agnes ela era perigosa. Tudo que envolvia seu eu pessoal, suas metas e objetivos, tudo aquilo era perigoso, podia facilmente ser roubado dela.

— Eu queria ser luz. Alguém que desse felicidade e alegria para o outros, e não derramasse discórdia e ódio. Você entende Kate?

Seus olhos se cruzaram, e todas as lembranças de erros e péssimas escolhas atravessaram as lembranças intactas de Kate. Agnes sabia muito bem o que havia na escuridão da outra garota, ela sabia e também se reconhecia, somente dessa forma era possível. Ou não.

Kate engoliu em seco, sua garganta a pressionava.

— Sim, eu sei.

Os braços de Agnes deslizaram pela mesa de madeira, sua cabeça repousou sob seu braço esquerdo, seus olhos piscaram mais algumas vezes antes de se fecharem e ficarem pressionados fortemente, nenhuma luz passaria e tudo que podia "ver" era a escuridão.

— Tudo o que você sente ao lembrar do que fez, é como eu me sinto diariamente.

Kate travou. Seus braços se arrepiaram com aquela simples frase, era simples, mas os significados que estavam por detrás de cada palavra era o suficiente para preenchê-la de desespero, como alguém conseguiria viver com tamanha vergonha, descrença, ódio e raiva, mas ainda assim manter um sorriso estampado no rosto? Quem era ela, que conseguia ignorar tudo e ainda assim sentir cada agulha de tudo?

Agnes era tudo, e ao mesmo tempo era nada.

— Mas... você não escolheu isso. — Franziu a testa.

— Você escolheu trair seus amigos? Seus sentimentos a levaram a fazer isso por você, seus desejos ocultos a fizeram estragar tudo. Você foi manipulada por si mesma.

Kate mordeu o lábio inferior, seus olhos ficaram na garota que deitava sobre a mesa de madeira em sua casa. Seu coração batia forte contra o peito dolorido, muita informação para uma noite só, ela mesma não podia suportar, então como ela, Agnes, suportava?

— Eu amo apenas a mim mesma. — disse por último, como uma resposta ao que pensava. — Você deveria tentar.

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