Chegava-se à casa de Devi passando por uma viela e subindo uma escada estreita de sacada atrás de um açougue.
Essa parte de Torrente me fez lembrar a Beira-Mar de Notrean. O cheiro enjoativo de gordura rançosa que vinha do açougue no térreo me levou a dar graças pela brisa fresca, que parecia outonal.
Hesitei diante da porta pesada que dava para a viela. Estava prestes a me envolver num negócio perigoso; Um agiota cealdamo poderia levar a pessoa aos tribunais, se ela não pagasse um empréstimo. Um usurário simplesmente mandaria espancá-la ou assaltá-la, ou as duas coisas.
Não era sensato.
Eu estava brincando com fogo.
Mas não tinha nenhuma opção melhor.
Respirei fundo, empertiguei os ombros e bati à porta.
Enxuguei as palmas das mãos suadas na capa, torcendo para mantê-las razoavelmente secas na hora de apertar a mão de Devi. Em Notrean eu aprendera que a melhor maneira de lidar com esse tipo de gente era agir com ar confiante e seguro. O negócio deles era tirar proveito da fraqueza alheia.
Ouvi o som de uma tranca pesada sendo levantada e a porta se abriu, revelando uma moça de cabelo liso, louro-avermelhado, que emoldurava um rosto de fada. Ela sorriu para mim, linda como um botão de flor.
— Pois não?
— Estou procurando Devi.
— Já a encontrou — disse a jovem, descontraída. — Vamos entrando.
Entrei e ela fechou a porta, repondo a tranca de ferro no lugar.
O cômodo não tinha janelas, mas era bem iluminado e lembrava a alfazema, o que era uma mudança bem-vinda comparado ao cheiro da viela. Havia tapeçarias nas paredes, mas a única mobília de verdade compunha-se de uma escrivaninha pequena, uma estante de livros e uma grande cama de baldaquino com as cortinas cerradas.
— Sente-se, por favor — disse a moça, apontando para a escrivaninha.
Instalou-se atrás dela e cruzou as mãos sobre o tampo. Seu jeito de se portar me fez reconsiderar sua idade. Eu a avaliara mal por conta do porte miúdo, mas, ainda assim, ela não poderia ter muito mais de 20 e poucos anos; o que estava longe de ser o que eu esperava encontrar.
Devi piscou os olhos para mim de um jeito gracioso.
— Preciso de um empréstimo — informei.
— Que tal o seu nome primeiro? — Ela sorriu. — Você já sabe o meu.
— Vanitas.
— É mesmo? — fez ela, arqueando uma sobrancelha. — Ouvi umas coisas a seu respeito — comentou, olhando-me de cima a baixo. — Pensei que fosse mais alto.
Eu poderia dizer o mesmo.
Fui apanhado de surpresa pela situação. Tinha me preparado para um brutamontes musculoso e para negociações repletas de ameaças e bravatas mal disfarçadas. Não sabia como lidar com aquela mocinha risonha, de ar desamparado.
— O que você ouviu? — perguntei, para preencher o silêncio. — Nada de mau, espero.
— Coisas boas e ruins. Porém nada entediante. — Tornou a sorrir.
Cruzei os braços, para não ficar me remexendo.
— E como vamos fazer isso, exatamente?
— Você não é de muita conversa, não? — disse Devi, com um rápido suspiro de decepção. — Muito bem, direto aos negócios. De quanto você precisa?
— Apenas um crimo. Oito iyanes, na verdade.
Ela abanou a cabeça com ar sério, fazendo o cabelo louro-avermelhado balançar para a frente e para trás.
— Receio não poder atendê-lo. Para mim, não vale a pena fazer empréstimos de meio lumen.
Franzi o cenho.
— Quanto vale a pena para você?
— Quatro crimos. É o mínimo.
— E os juros?
— Cinquenta por cento a cada dois meses. Portanto, se você está pensando em tomar o mínimo possível, serão dois crimos no fim do período. Você poderá quitar a dívida toda por seis, se quiser. Mas, até eu receber de volta todo o principal, serão dois crimos a cada período.
Assenti com a cabeça, não terrivelmente surpreso. Era mais ou menos quatro vezes o que até o agiota mais avarento cobraria.
— Mas estarei pagando juros por um dinheiro de que não preciso propriamente.
— Não — retrucou ela, fitando-me com um olhar sério. — Estará pagando juros pelo dinheiro que pegou emprestado. A negociação é essa.
— Que tal dois crimos? Assim, no final...
Devi abanou as mãos, interrompendo-me.
— Isto aqui não é uma barganha. Estou apenas informando as condições do empréstimo. — Deu um sorriso. — Desculpe se não deixei isso claro desde o começo.
Olhei-a, observando a postura de seus ombros, o jeito como enfrentava meu olhar.
— Está bem — respondi, resignado. — Onde eu assino?
Devi me olhou com um ar levemente intrigado e um ligeiro franzir da testa.
— Não é preciso assinar nada — respondeu.
Abriu uma gaveta e tirou um frasquinho marrom com tampa de vidro. Colocou um alfinete comprido a seu lado em cima da escrivaninha:
— Só um pouquinho de sangue.
Fiquei enregelado na cadeira, com os braços caídos junto ao corpo.
— Não se preocupe — tranquilizou-me. — O alfinete está limpo. Só preciso de umas três boas gotas.
Finalmente recobrei a voz:
— Você só pode estar brincando.
Ela inclinou a cabeça de lado e deu um sorrisinho, levantando um dos cantos da boca.
— Você não sabia? — indagou, surpresa. — É raro alguém entrar aqui sem conhecer a história toda.
— Não posso acreditar que alguém realmente... — Parei, sem saber o que dizer.
— Nem todos acreditam. Em geral, faço negócios com alunos e ex-alunos. O pessoal do lado de cá do rio acharia que sou uma espécie de bruxa, demônio, ou alguma bobagem desse tipo. Os membros do Arcano sabem exatamente por que quero o sangue e o que posso fazer com ele.
— Você também é membro do Arcano?
— Ex-membro — respondeu, deixando o sorriso atenuar-se um pouco. — Cheguei a A'scor antes de sair. Sei o bastante para compreender que, com um pouquinho de sangue, você nunca poderá esconder-se de mim. Posso arrancá-lo de qualquer lugar.
— Entre outras coisas — retruquei, incrédulo, pensando no boneco de cera que fizera de Hilme no começo do período. Aquilo tinha sido apenas um fio de cabelo. O sangue era muito mais eficaz para estabelecer um elo. — Você poderia me matar.
Devi me olhou e foi franca:
— Você tem tudo para se tornar o brilhante novo astro do Arcano. Pense bem. Eu me manteria nos negócios se tivesse o hábito de agir com má fé?
— Os professores sabem disso?
Ela riu.
— Pelo corpo de Deus, é claro que não! E os guardas, o bispo e minha mãe também não sabem — disse. Apontou para o próprio peito, depois para mim: — Você sabe e eu sei. Isso costuma ser o bastante para garantir uma boa relação de negócio entre duas pessoas.
— E quanto ao que não costuma acontecer? E se eu não tiver seu dinheiro no fim do período? O que acontece?
Ela afastou as mãos e deu de ombros, despreocupada.
— Nesse caso, combinaremos alguma coisa entre nós. Como pessoas racionais. Talvez você trabalhe para mim. Revelando segredos. Fazendo favores. — Sorriu, dando-me uma olhada lasciva e lenta, achando graça de meu embaraço. — Se acontecer o pior e você acabar sendo extraordinariamente imprestável, é provável que eu possa vender seu sangue a alguém, para recuperar meu prejuízo. Todo mundo tem inimigos. Mas nunca precisei descer a esse nível. Em geral, a ameaça é o bastante para manter as pessoas na linha.
Devi observou a expressão do meu rosto e arriou um pouco os ombros.
— Ora, vamos — disse, com ar gentil. — Você chegou aqui na expectativa de encontrar um agiota de pescoço grosso e uma porção de cicatrizes nos punhos. Estava disposto a negociar com alguém que estaria pronto a espancá-lo até fazê-lo ver 12 cores diferentes, se atrasasse o pagamento por um dia. O meu jeito é melhor. Mais simples.
— Isso é loucura — retruquei, ficando de pé. — De jeito nenhum.
A expressão animada de Devi desapareceu.
— Controle-se — recomendou, ficando visivelmente preocupada. — Você está se portando como um lavrador, pensando que eu quero comprar sua alma. É só um pouco de sangue para eu poder controlar seu paradeiro. É uma espécie de garantia. — Fez um gesto tranquilizador com as duas mãos, como se alisasse o ar. — Certo, façamos o seguinte. Eu o deixo pegar emprestada a metade do mínimo. Dois crimos. Isso facilita as coisas?
— Não. Lamento ter tomado o seu tempo, mas não posso fazer isso. Há outros agiotas aqui por perto?
— É claro — respondeu Devi friamente. — Mas não me sinto particularmente inclinada a fornecer esse tipo de informação. A propósito, hoje é dia-da-pera, não é? Você não precisa do dinheiro da taxa até o meio-dia de amanhã?
— Nesse caso, acharei os agiotas sozinho — afirmei, ignorando a pergunta.
— Tenho certeza de que achará, sendo o menino inteligente que é — disse Devi, despachando-me com o dorso da mão. — Fique à vontade para se retirar. E tenha bons pensamentos sobre a Devi daqui a dois meses, quando um brutamontes estiver arrancando a pontapés os dentes dessa sua linda boquinha.